"Se não podes dar ao teu discípulo tuas próprias asas, dá-lhe o anseio de voar e contenta-te em ser a mais humilde pedra que sustentará a sua galgada".
Georges Duhamel
A Educação como Instrumento de Libertação e Transformação
A educação é, por natureza, um ato político e social que transcende a mera transmissão de conteúdo. Para muitos teóricos, como Paulo Freire, ela tem o poder de ser um espaço de transformação, liberdade e resistência. No entanto, para que a educação cumpra essa função, é necessário que os professores reflitam sobre as estruturas de poder e as práticas estabelecidas dentro das escolas.
Este artigo busca abordar a importância de uma educação crítica, focada na autonomia e na democracia, e o papel essencial que os professores desempenham nesse processo.
A Escola como Espaço de Poder e Resistência
A escola, muitas vezes vista como um espaço neutro de transmissão de conhecimento, está imersa em uma rede complexa de poder que molda suas práticas e estrutura. Como afirmam Marisa Faermann Eizirik e Denise Comerlato no livro A Escola Invisível, há redes de poder dentro da escola que constituem “núcleos de profunda e arraigada resistência a mudanças”. Essas redes, frequentemente invisíveis ou naturalizadas, perpetuam uma cultura de controle, hierarquia e silêncio, que dificulta a promoção de um ambiente educacional crítico e transformador.
Uma dessas formas de controle é a busca pela uniformidade, que Eizirik e Comerlato destacam como um aspecto hierárquico presente nas escolas. Ao impor um padrão único de comportamento, silenciar a diversidade e padronizar o ensino, a escola reforça a obediência e a submissão. Esse cenário é refletido no conceito de currículo oculto, descrito por Tomaz Tadeu da Silva, que explica que, além do conteúdo explícito, os “aspectos do ambiente escolar” ensinam atitudes e comportamentos que contribuem para a perpetuação de estruturas sociais injustas, antidemocráticas e opressoras.
O currículo oculto manifesta-se de diversas maneiras: na organização espacial das salas de aula, nas relações de autoridade entre professores e alunos, e até nos padrões de recompensa e castigo que condicionam os estudantes a obedecer e se adaptar às normas. Essa configuração invisível, mas poderosa, é um dos grandes desafios que os professores enfrentam ao tentar criar uma educação mais inclusiva e crítica. Para transformar esse cenário, é necessário que os educadores assumam uma postura de reflexão constante sobre suas práticas pedagógicas e o impacto que elas têm na formação dos estudantes.
O Papel do Professor na Educação para a Liberdade e Autonomia
Para muitos teóricos, o professor desempenha um papel central na promoção de uma educação que fomente a autonomia e a liberdade dos estudantes. Ivan Illich, em sua crítica à “liturgia escolar”, aponta para a rigidez das instituições de ensino, que, por meio de suas práticas de exclusão, reforçam uma ideia de que o sucesso está atrelado à adequação a um modelo único e padronizado. Para Illich, a escola tem o monopólio da instrução e sanciona a exclusão daqueles que falham em seguir suas normas, criando uma realidade social em que o indivíduo é moldado para ser um “bom cidadão” obediente às estruturas vigentes.
Essa visão é reforçada por Condorcet, que argumenta que a verdadeira educação “faz indivíduos indóceis e difíceis de governar”. O professor, nesse contexto, não deve ser um agente de controle, mas sim um facilitador de questionamento e crítica. Como afirma Rodrigo Ratier em Educação contra a Barbárie, a escola transformadora “não suprime a rebeldia e nem a condena de antemão”. Ao contrário, ela canaliza a raiva e a rebelião dos estudantes para o questionamento das injustiças e a busca por soluções transformadoras.
É importante lembrar que o adolescente é, por natureza, um ser extremamente crítico e reflexivo. No entanto, como destaca Ratier, muitas vezes a escola “cuida de demolir tudo isso”, suprimindo essa capacidade de reflexão crítica em nome da manutenção da ordem e do controle. O desafio do professor, nesse cenário, é permitir que os estudantes expressem suas inquietações e rebeldias, entendendo-as como partes fundamentais do processo de formação de indivíduos autônomos, capazes de exercer o pensamento crítico em relação às estruturas de poder e injustiça social.
Espaço para o Pensamento Crítico e a Invenção
Uma das críticas mais frequentes às escolas tradicionais é a falta de espaço para o pensamento crítico e a criatividade. Como questionam Eizirik e Comerlato: “Na escola, onde está o espaço para pensar? Onde está o espaço para olhar e inventar? Onde está o espaço para criticar?” A busca incessante pelo silêncio e pela conformidade impede que a escola se torne um espaço de invenção e transformação, onde o conhecimento produzido não se limita à reprodução de modelos prontos e paradoxais, em desconexão com as necessidades reais da comunidade escolar.
A escola que não se debruça sobre os conhecimentos que estão sendo produzidos dentro dela, como afirmam Eizirik e Comerlato, “fica à mercê de repetir modelos”, o que impede a inovação e a crítica. Para que a educação seja verdadeiramente transformadora, é fundamental que os professores criem espaços onde os estudantes possam questionar, refletir e propor soluções para os problemas que enfrentam no cotidiano.
Uma prática pedagógica crítica deve valorizar o diálogo, a reflexão e a ação. Como sugere Paulo Freire, a educação deve ser um processo de conscientização, no qual os estudantes são estimulados a perceber as contradições da realidade e, a partir disso, agir para transformá-la. Nesse sentido, o professor tem o papel de mediador, facilitando a construção coletiva do conhecimento e estimulando os estudantes a se tornarem sujeitos ativos na luta por uma sociedade mais justa e democrática.
O Currículo Oculto e a Perpetuação das Injustiças
O conceito de currículo oculto, abordado por Tomaz Tadeu da Silva, é fundamental para entendermos como a escola, mesmo sem querer, perpetua as desigualdades sociais. O currículo oculto refere-se a todos aqueles aspectos da vida escolar que, embora não façam parte do currículo oficial, contribuem para a socialização dos estudantes em uma sociedade desigual, racista, machista e LGBTfóbica. Ele se manifesta na maneira como o tempo é organizado, nas relações de poder entre professores e alunos, e nas expectativas impostas sobre os estudantes.
O que se aprende no currículo oculto, segundo Tadeu da Silva, são “atitudes, comportamentos, valores e orientações que permitem que crianças e jovens se ajustem às estruturas sociais injustas” da nossa sociedade. Para transformar essa realidade, é essencial que os professores tenham consciência desses mecanismos implícitos e trabalhem para desconstruí-los, criando um ambiente escolar mais democrático e inclusivo.
O Papel Transformador do Professor
Em última análise, a educação crítica é um processo que exige a constante reflexão sobre as práticas pedagógicas e as estruturas de poder presentes no ambiente escolar. O professor, como mediador desse processo, tem a responsabilidade de criar espaços de liberdade, autonomia e crítica, onde os estudantes possam se desenvolver como sujeitos ativos, conscientes de suas capacidades de transformar a sociedade.
Como afirmam Eizirik e Comerlato, a escola precisa olhar para dentro de si, questionar suas práticas e estar aberta à mudança. Somente assim será possível construir uma educação verdadeiramente emancipadora, que prepare os estudantes não apenas para se adaptarem às estruturas sociais existentes, mas para questioná-las e transformá-las.
Para os professores da rede municipal, este é um convite à reflexão e à ação. Ao compreenderem o papel fundamental que desempenham na formação dos estudantes, poderão criar ambientes de aprendizagem que promovam a autonomia, a democracia e a transformação social. Afinal, como dizia Condorcet, a verdadeira educação forma “indivíduos indóceis e difíceis de governar” — e é exatamente disso que o mundo precisa. Nesse processo, é igualmente essencial que os próprios professores se posicionem como agentes críticos e participativos, questionando, engajando-se ativamente nas discussões sociais e educacionais, e incentivando o desenvolvimento de uma consciência cidadã em suas práticas pedagógicas.
REFERÊNCIAS:
EIZIRIK, M,F; COMERLATO, D. A escola (in)visível: jogos de poder, saber, verdade.2.ed.Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
ILLICH, I. In. COELHO, P. (org.). Educação e Liberdade.São Paulo: Imaginário. 1990.
LIMA, L.C. E escola como organização educativa. 2 ed. São Paulo: Cortez. 2003.
RATIER, R. In. CŚSIO, F. Educação contra a Barbárie. (org.). São Paulo: Boitempo. 2019.
SILVA, T, T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2004.
TELES, M.L.S. Educação: a revolução necessária. 3.ed. Petrópolis: Vozes. 1992.